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A mão

Writer: universocotidiano1universocotidiano1

Updated: Nov 27, 2022


Julia cresceu vendo a mãe trabalhar como manicure em um salão de beleza. Sua mãe, Teresa, administrava o salão com as duas irmãs, Silvia e Simone, ambas cabeleireiras.

Julia passou a infância vendo a mãe e as tias trabalhando e ouvindo conversas sobre tintas de cabelo, esmalte e penteados de festa. Na adolescência, trabalhou como manicure e só parou quando começou seu curso de Administração na universidade.

Conseguiu emprego depois de formada e assim mesmo, passava algumas horas no salão com a mãe. Julia adorava cuidar das próprias unhas. Cada semana, trocava a cor do esmalte e colocava adesivos. Às vezes, fazia francesinha, outras, deixava alongar, fazia desenhos e testava diferentes estilos nas suas unhas.

Uma noite, estava em casa, em seu quarto, vendo TV antes de dormir. Ainda morava com a mãe, que dormia no quarto ao lado. Não conseguia pegar no sono, virava de um lado para o outro. Alguma coisa a deixava desconfortável mas não sabia o que era. Sentiu algo se movendo debaixo do lençol. Colocou a mão debaixo do cobertor e tocou em um objeto macio e quente, puxou e com surpresa e terror, viu que era uma mão.

Pulou da cama ao perceber que a mão se movia, tentando alcançá-la. Ouviu a mão dizer, embora não entendesse como a mão falava, que estava tudo bem, que era só uma mão. Saiu do quarto gritando, trouxe a mãe para ver, mas na cama não havia nada. A mãe disse que ela provavelmente tinha sonhado e saiu rindo da filha.

Júlia deitou novamente na cama e a mão segurou o seu braço. Julia congelou de medo, mas ainda assim conversou com ela, aquela mão solta e estranha. Disse que por favor, sumisse da sua vida e a mão respondeu que estava ali porque era sua amiga, e que assim como Júlia, também se sentia sozinha. Então conversaram muito e as duas contaram suas histórias de vida. Tinham muitas coisas em comum. Ambas gostavam de se cuidar, eram jovens.

Viraram amigas. A mão a ajuda a arrumar o quarto, a coçar as suas costas e a lavar o seu cabelo. Escolhiam juntas o filme que iriam ver antes de dormir. A mão tinha seu próprio travesseiro, ao lado do de Júlia. A mão fazia carinho em seu rosto até Júlia cair no sono. Usando o mesmo esmalte, Júlia pintava as suas unhas e também as da amiga, enquanto conversavam baixinho, para que a mãe não escutasse. Júlia temia que Teresa não entendesse essa relação de afeto.

Júlia começou a levar a mão para o trabalho e a deixava dentro de sua bolsa. Levava-a também quando saía com as amigas, quando ia ao salão de beleza e quando encontrava um namoradinho. No começo, a mão gostava de sair mas não gostava de ficar somente dentro da bolsa, como uma clandestina. Queria ser apresentada a todos, mas Júlia não sentia que era o momento.

Durante uma tarde, as duas conversavam enquanto Júlia pintava as unhas da mão da mesma cor das suas: vermelho. A mão dizia estar triste por não poder circular pela casa e decidiu que era melhor ir embora. Júlia sentiu um desespero, pediu um prazo para preparar a mãe e as tias para essa conversa. A mão disse que não, que no outro dia iria sair. No impulso, Júlia segurou a mão com força e a trancou na gaveta do seu armário. A mão gritava, pedia ajuda. Júlia disse que conversariam depois. Acordou agitada, nervosa. Olhou ao redor, percebeu que dormira demais e sentiu-se aliviada por acordar desse pesadelo. Foi para o trabalho, depois passou pelo salão e voltou para casa. Seguiu sua rotina. Chegou em casa com o plano de deitar em sua cama e ler antes de dormir. Quando terminou seu banho, caminhou até o seu armário. Estava procurando seu pijama favorito. Percebeu uma das gavetas do seu armário já estava aberta. Pensou naquela mão ainda viva em sua memória. Sentiu dor quando percebeu que uma faca atravessava seu pé. De relance, olhou para o chão e viu uma mão sangrando. Com unhas pintadas de vermelho.




Image: "Aquela mão" (2022), by Vera Bulla.



 
 
 

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