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Crônica #2: A audácia de dizer “não”



Pela primeira vez, li um romance de Jane Austen (1775-1815). Escolhi ler Mansfield Park (1814) porque quis acompanhar uma leitura coletiva do Canal Ler Antes de Morrer. Aqui, eu não pretendo fazer resumo da obra e sim, um comentário sobre algo específico: o momento em que a protagonista disse “não” a Henry, o galã do romance. Esse não é tão importante quanto todos os de muitas mulheres ao longo dos séculos. Não é não, mas para Henry e muitos homens por aí, não é só um talvez, um "insista mais que você tem chance, está quase lá".


Fanny foi enviada aos dez anos pelos pais, que tiveram muitos filhos e pouca renda, para morar com os tios ricos em Mansfield Park. Lá, Fanny trabalha na casa, ajuda a tia e lê muito. Quando adolescentes, os primos Tom, Edmund, Maria e Julia junto com os vizinhos Mary e Henry, decidem estudar e encenar uma peça de teatro. Fanny disse que preferiria ser parte da platéia. Os outros insistiram muito, mas enfim entenderam o primeiro não de Fanny.


O segundo não foi realmente o que me chamou atenção. O chatíssimo do Henry gostava do jogo de conquistas e já tinha arrastado asa para a Maria, que estava noiva, e para a irmã mais nova, Júlia. As duas responderam com interesse aos galanteios dele. Henry resolveu dar uma cantada em Fanny. Ele comenta com a irmã Mary, que para ajudar a passar o tempo, o plano dele é fazer com que Fanny se apaixone por ele e que não ficará satisfeito enquanto não fizer “um buraquinho no coração de Fanny” (capítulo XXIV).


Pois bem, esse passatempo de Henry começa no capítulo 24. Ele investe pesado. Além de escrever cartinhas de amor para ela, a irmã dele, Mary, também escrevia para Fanny e falava bem do irmão. Mesmo já tendo ouvido um não, Henry visitou a família para oficialmente pedir ao tio dela, Thomas, a mão de Fanny em casamento e ela novamente disse que não tinha interesse. Thomas não compreendeu e perguntou o motivo de sua recusa. Fanny diz claramente “Eu não gosto suficientemente dele para me casar com ele” e Thomas responde “Isso é muito estranho.” Todos os membros da família insistiram, imagine como deve ter sido a pressão para que ela aceitasse casar com esse rapaz.


Para dar uma pressão extra, o tio manda Fanny para a casa dos pais dela, onde ela observa o contraste, a pobreza da sua família e a riqueza dos tios, a casa barulhenta dos seus pais e a calmaria da casa dos tios, fora o tédio da cidade pequena e a falta de opções de livros, além de todo dia Fanny acrescentar um item na lista de motivos para voltar para Mansfield Park. Henry vai para a casa dos pais de Fanny e oferece para ela um casamento e uma vida social e econômica estável. Nesse momento, eu já não sei se ele realmente começou a gostar dela. Na verdade, não me interessa, o que mais me incomoda é essa insistência de todos os personagens desse romance. Todo mundo quer que Fanny aceite o casamento e ninguém entende sua rejeição. Até ela começa a pensar em dizer sim, talvez para sair da casa dos pais, talvez pensando que possa gostar dele depois, talvez pela tamanha insistência de Henry, que mais parece uma fixação, uma birra, já que talvez nunca tenha ouvido um não na vida.


Por fim, Fanny volta para a casa dos tios para ajudar a família já que algumas tragédias aconteceram. O filho mais velho, Tom, caiu do cavalo e precisava de ajuda, a filha mais velha Maria traiu o marido com adivinha quem…. Henry! O novo casal, Henry e Maria, fugiu mas como Henry não casou com Maria, ele teve que ir para outra cidade recomeçar sua vida. Maria, por sua vez, além de ter o casamento anulado, teve que morar isolada já que ninguém iria se casar com ela. Em suma, sua reputação estava arruinada.


Lembra que a obsessão de Henry começou no capítulo 24? A teimosia dele somente termina no capítulo 46. São vinte e dois capítulos de repetidas negações e explicações de que não, ela não quer casar com Henry, ela não quer casar por dinheiro, não quer casar por causa da possibilidade de se apaixonar por ela, ela não quer casar para morar em Londres, nada dá motivação para casar com esse rapazinho que não consegue ouvir um não. O livro tem 48 capítulos, ou seja, Jane Austen emprega quase metade do seu romance para instigar o debate sobre a impossibilidade da compreensão em um simples não. Depois que descobri que Jane Austen nunca se casou, fiquei imaginando quantos não ela distribuiu por aí.





Imagem: Fanny (2022), de Carol Sue Meech


 
 
 

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