top of page

O vaqueiro Estevão

Writer: universocotidiano1universocotidiano1

Updated: Jun 22, 2022


Estevão nasceu em uma noite muito quente no celeiro da Fazenda Três Corações. A sua mãe sofrera muito e devido ao parto difícil, foi decidido que essa seria a sua única cria. Ele cresceu sem irmãos, porém com muitos amigos. Todos tiveram uma infância muito curta e logo começaram a trabalhar como empregados na fazenda. Estevão nunca gostou de receber ordens. Ele havia nascido para liderar e espontaneamente distribuía tarefas para o grupo. Contudo, ele não nascera do lado certo da fazenda e, vindo de uma família tradicionalmente de serventes, seu papel de liderança não era sequer um sonho.

Sempre correndo pela fazenda, Estevão via o grupo de vaqueiros levando a boiada para beber nos rios, comer pelas matas, fazer trocas e vendas de boi e seu sonho era ser o líder dos vaqueiros, o patamar mais alto da realidade que conhecia no cerrado. Naturalmente, não questionou quando o colocaram para trabalhar com os vaqueiros e, para ele era como um treinamento. Porém, ele era apenas mais um. Sofria como todos debaixo do sol quente, levava e trazia o gado, ouvia os vaqueiros mais experientes contarem causos, piadas e reclamações dos patrões. Ouvia com curiosidade quando eles conversavam sobre festas, comida, aspirações e sufocos do dia-a-dia. Sentia-se próximo à eles e não um deles.

Estevão trabalhava arduamente, às vezes mais que os outros, para mostrar quão forte era. Carregava muito peso e mesmo cansado, não reclamava. De todos os cavalos do grupo, Estevão era o mais forte e ele sabia que sua vida estaria limitada a isso. Ele sabia que tinha mais vinte anos pela frente e seu sonho era ter uma forma humana desde que era pequeno. Um verdadeiro vaqueiro, forte e respeitado. Sabia, de escutar dos vaqueiros, que as curandeiras da região eram mulheres muito sábeis e com poderes de transformar sonhos em realidade. Esperava o momento para conversar com uma delas. E foi através da minha avó que conheci a história de Estevão.

Minha avó Josefa e sua família moravam muito perto da fazenda. Conhecedora das ervas e das plantas locais, minha avó era ainda uma aprendiz quando Estevão entrou em contato com a minha família. A minha bisavó, conhecida apenas por Mãezinha era uma curadeira. Fazia de tudo um pouco para tratar pessoas, plantas e animais com remédios naturais. Fechava feridas, rezava em umbigos de crianças recém nascidas, limpeza de mal olhado, entre outros rituais de cura. De vez em quando aparecia um vaqueiro com dor nas costas, uma criança com uma verruga e mulheres buscando simpatias para segurar ou conseguir marido.

Chamada na fazenda para ajudar a controlar os episódios de vômitos dos quais os filhos dos donos da fazenda sofriam, Mãezinha notou uma secreção amarelada nas roupas das crianças. Talvez estivessem brincando perto do celeiro. Pediu para ver os cavalos e, nesse dia, conheceu Estevão. Eles trocaram olhares e ela se aproximou do jovem cavalo tocando sua cabeça. – “Que alma desassossegada, menino”, Mãezinha pensou. Ele fechou os olhos curvando-se à sua frente. Ela também fechou os olhos e sentiu tocar uma cabeça humana. Seus dedos deslizaram por cabelos longos e lisos, sobrancelha grossa, nariz fino e longo, um queixo um pouco rechonchudo e uma boca de lábios finos. Continuou com os olhos fechados deixando com que suas mãos conhecessem os traços de Estevão. – “Não te preocupe, rapaz. Eu sei que não queria causar dor às crianças, tu só queria uma razão para que me chamassem aqui. O que me pede eu nunca fiz antes. Te transformar em homem? Possível é, difícil também. Não, não chore. Fique tranquilo. Façamos assim. Na madrugada do dia vinte e nove de agosto, terá que sair do celeiro sem que ninguém o veja e se encontrar comigo na beira do rio. Eu mandarei alguém vir aqui destrancar a porta do estábulo”.

Mãezinha teve dois meses para se preparar. Curiosa, visitou outras curandeiras, fez rezas, cálculos e chás. Passava madrugadas no quarto cantando, batendo palmas, rezando e às vezes, sussurrando. Na madrugada, como combinado, foi até o rio. Um primo dela foi ao celeiro e abriu a porta para Estevão que, muito feliz, galopava freneticamente. Ao chegarem perto do rio, Mãezinha estava de cócoras. Na sua mão esquerda, um ramo de alecrim e na direita, um pano preto. Ainda de cabeça baixa, Mãezinha tocou no pescoço do cavalo e começou a rezar. Estevão olhou para ela e não viu seus olhos. Ele queria comunicar-se com ela, porém não conseguia compreender o que ela dizia. Estevão se assustou, teve dúvidas e deu dois passos para trás. Questionou sua decisão. Já que ele não gosta da sensação da espora nas suas costelas, por que então ele se tornaria um vaqueiro para controlar sua própria espécie? Estava com medo. Mãezinha levantou o pano preto e lentamente pousou-o sobre sua própria cabeça. Estevão podia ver a forma do rosto por cima do pano. Era um rosto exageradamente comprido e com olhos profundos e cinzentos. No lugar na boca, uma grossa linha dourada que não se abria. – “Dez anos da tua vida é teu preço”, disse a voz, que não era mais a de Mãezinha. Estranhamente fascinado, Estevão curvou-se e uma mão pesada tocou-lhe a cabeça. Não era a mesma sensação da primeira vez que Mãezinha o tocara, entretanto sentiu paz. Sentiu uma tontura ao repousar seu rosto na grama. Relaxado, fechou os olhos. Viu-se caminhando pelos pastos, tocando o capim com suas mãos. Abraçou uma árvore. Suas pernas sustentavam seu peso enquanto mexia seus dedos e o barro no chão. Respirou fundo e deixou-se levar pelo ventinho fresco que fazia. De vez em quando alguém diz que o viu galopando pela fazenda.

Image " Estevão" (2022) by Vera Bulla

Comentários


Universo Cotidiano

universocotidiano11@gmail.com

All copyright of texts and images belong to Universo Cotidiano unless noted otherwise. If you choose to share you must give credit to the authors : Vera Bulla and Andrea Villa accordingly.

©2022 by Universo Cotidiano. Proudly created with Wix.com

bottom of page