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PI-115

Updated: Aug 7, 2022


Minha morada é na PI-115, mais precisamente no final de uma curva maliciosamente curta que convida os motoristas e ciclistas desatentos à morte. Vivo aqui desde minhas primeiras memórias. Os dias passam por aqui lentamente. Já que chegou agora, sei que precisa se acostumar com o ambiente. Pode caminhar sem enxergar o fim da estrada, pode ir e voltar, sem pressa. Em algum momento, você vai ouvir alguns gritos e pedidos de socorro. Pode ser que consiga vê-los e até falar com eles. São as almas que ainda não fizeram as pazes com o destino.


Adiante, você vai ver um casal procurando pelo filho de doze anos. Eles não entendem que o espírito dele, conformado, já não está mais por aqui.


O motorista procura por sua D-10 vermelha, ele está preocupado se alguém vem ajudá-lo a rebocar o carro e levá-lo para uma oficina. Ele não viu quando um mecânico carregou a carcaça do que era seu orgulho e ganha pão. O veículo, usado como pau de arara, transportava mais passageiros do que era permitido. Eu lembro quando capotou três vezes. Pela velocidade, imagino que estivesse planejando outras tantas idas e voltas trazendo e levando trabalhadores e sonhadores. Claro que visava o lucro, mas mantinha o mínimo de conforto no seu pau de arara. Colocou uma lona amarronzada fixada em vários pedaços de ferro. De longe, eu vi as placas de madeira sendo arremessadas ao vento. Nelas, os passageiros se espremiam competindo por uma sombra enquanto o carro seguia com a velocidade que mal dava para se equilibrar. Por causa do calor e do excesso de passageiros, o pau de arara andava perto de ser uma tortura, porém não tinha comparação com o pau de arara usado para torturar os escravizados. Eu também os vi passar por aqui. Esses já encontraram sua paz.


Já que o pau de arara carregava mais de cinquenta pessoas naquela tarde quente, é comum você encontrá-las pela estrada, ainda desorientadas. Entretanto, outras almas estão circulando por aí, algumas de outros acidentes de carro ou de motocicleta, como é o caso da loira de cabelos longos. Ela vinha com uma amiga, na garupa da moto. As duas usavam capacetes e não ultrapassaram o limite de velocidade, porém ao tentar driblar a curva, encontraram uma vaca, tranquila e desobediente, que atravessava no momento errado. A morena sobreviveu e vez ou outra passa por aqui, reza um pouco e pede desculpas para a amiga que ficou. A loira ouve o choro e se desespera para voltar com a amiga. Não entende que por mais que tente pegar carona, sempre volta para a mesma curva. Ela já tentou de tudo, motos, caminhões, tratores, carros comuns e até bicicleta. Não adianta, ela segue até um certo caminho, conversa com os motoristas que, perplexos, não entendem como a loira que pede carona simplesmente some. Desesperada, uma vez, ela se agarrou à direção do carro, como se isso a fizesse garantir que voltaria para casa. Porém, sempre retorna para a estrada, desapontada e aflita.


Antes de você, o morador mais recente dessa estrada era aquele rapaz com a mão na cintura. Logo que você se sentir à vontade, pode ir conversar com ele. Já adianto que ele vinha de uma festa, tinha bebido uma ou duas cervejas e perdeu o controle da Honda Pop. Não tinha nenhuma vaca e sim, vários buracos na estrada, reparações mal feitas e superfaturadas, resultados de serviços feitos às pressas para alcançar as eleições.


Dividindo espaço com a mata de beira de estrada, você encontrará variadas cruzes, vítimas da pressa ou da desatenção. Algumas cruzes têm mais flores que outras. Muitas escondem uma foto ou uma carta. Cruzes de madeira, cruzes de metal ou até mesmo dois galhos unidos por um prego enferrujado. No Dia dos Finados, alguns carros estacionam em um campo aqui perto. Posso ver daqui a fileira de familiares que deixam flores ou um lamento.


Estarei aqui pra quando quiser conversar. Sua família te enterrou tão perto de mim que te darei o conforto que minhas folhagens permitirem. Assim como minhas vizinhas, as tantas ipês coloridas distribuídas ao longo da PI-115, não me importo se você encostar sua cabeça no meu tronco. Aproveite a minha sombra.



Image: Photo Ipê, by Mayara Cardoso



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