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Reisado




Claro, conto sim o que aconteceu. Mas, para o senhor entender, preciso dar umas explicações porque gente de fora não entende a tradição do povo do interior. Era janeiro e as festas de reisado estavam sendo programadas. Somente algumas famílias recebem o grupo do reisado, formado pelo tocador, responsável por cantar as rimas, os três caretas, que dançam e são fundamentais para o espetáculo e claro, o boi e a burrinha, figuras importantes para a atração. Sim, a ideia foi minha em fazer um reisado em casa. Queria agradecer pelo bom ano de cultivo das verduras, pelo lucro e pelo crescimento da quitandinha.


A festa do reisado acontece na frente da casa da família. Sim, também fazemos parte do grupo de reisado, já fizemos outros, mas nunca na nossa residência. O grupo é unido, a gente canta, dança e recolhe dinheiro para benefício do povo. Sim, nós já fizemos reformas em igrejinhas e também arrumamos uma barragem que serve pra todos aqui da cidade. O papel do grupo é muito valioso. Além de apresentar o espetáculo, o grupo recebe doações de comida ou dinheiro. Como temos nossa quitanda de verduras, sempre as doamos para a festa. Esse ano foi mais importante porque foi a primeira vez que recebemos o reisado. É uma honra receber o grupo, é uma tradição que não pode morrer. Em muitas cidades, nem existe mais ou então a folia de reis foi modificada com o passar dos anos. Aqui no Piauí, a festa é bem rústica e contém os elementos mais antigos e básicos.


As caretas, que são as máscaras usadas pelos três dançarinos, são feitas do material que temos no momento. Já vi careta feita de palha, de pano e até de uma caveira de bode. Não importa do que seja feita a careta, o importante é agradecer pelo ano que teve, é a sua gratidão que vale nessa celebração. Não se assuste com a careta não, moço. Não é pra celebrar o diabo, muita gente de fora vê e se assusta.


Calma, calma que já chego no final. Todos na celebração são voluntários. Nós temos as costureiras que fazem as capas para os bois, os artesãos que fabricam as fantasias com as palhas de carnaúba e as cozinheiras. Todos dão o que possuem e se não possuem em material, dão seu trabalho. O que move tanta gente? É a fé. A população agradece os pedidos feitos no ano anterior. Nossa cidade, Campo Pequeno, se enfeita toda. Podemos também pedir bençãos para o ano que começa. Os pedidos ninguém fala, mas todo mundo especula. Sabe como é o povo de uma cidade pequena, tem fuxico pra todo lado.


Eu tinha tudo que queria. Contava quarenta e cinco anos e além da quitandinha, eu tinha uma pequena horta, assistia novela e lia de vez em quando. Se era uma vida monótona? Não, não era não. Já trabalhou em seu próprio negócio? Se tu não for trabalhar, ninguém vai por ti. Eu acordava cedo, limpava o salão, lavava as verduras, cuidava do caixa e reparava se Milton trazia o carregamento das verduras e se entregava os pedidos direitinho. Não vou dizer que Milton era um marido perfeito, eu achava ele até meio preguiçoso. A ideia da quitanda foi minha, o dinheiro pra investir foi meu, mas ele gostava de se gabar que o negócio era dele. Até aí, tudo bem. O problema era que Milton se mostrava um pouco agressivo. Agressão se mede? Pois então era muito agressivo. O que tinha de gentil e humilde, tinha de desaforado e implicante. Durante esses quase vinte anos de casados, ele havia puxado meus cabelos e me empurrado algumas vezes.


Nunca passou pela minha cabeça me separar dele não, moço. Já não tinha mãe nem pai e eu não queria ficar sozinha. Todo ano eu pedia a mesma coisa, queria viajar pelo mundo. O dinheiro, se apertasse, daria pra conhecer um lugar bem longe, talvez não a Argentina, mas daria pra passar um frio em Porto Alegre.

Eu tinha um plano, me faltava a coragem de ir sozinha já que o Milton achava que era besteira sair por aí sem conhecer ninguém, só vendo retrato em parede de museu.


O pedido dele? É uma boa pergunta, acho que ele pedia pra ganhar na loteria e não ter que trabalhar mais ou talvez pedisse pra ser um fazendeiro. Não sei se pedia pra ser pai, porém vez ou outra, jogava na minha cara que eu era seca por dentro porque de tão ocupada com trabalho ou com minhas novelas, eu não tinha gerado a família que ele achava que ia ter quando nos casamos. Um dia, depois de beber umas e outras, ele deu um soco na minha barriga, falando que quem sabe com umas porradas, minha barriga ia funcionar. Mandei ele pra fora e ele ficou um dia sumido. Foi briga feia, a cidade toda ficou sabendo, mas eu disse que ele era gentil, não disse? Pois eu o aceitei de volta, depois que o efeito da cachaça tinha passado. Ainda mais, as entregas das verduras estavam atrasadas.


Na manhã do reisado, Milton bebeu de novo e disse o que estava preso. Sim, isso mesmo. Na manhã! Eu disse que era melhor ele tomar um banho e voltar pra quitanda. Ele falou que eu só pensava em dinheiro. Eu disse que ele era frouxo. Se ele bateu em mim nesse dia? Com a mão não bateu não, meu senhor. Bateu foi com a língua. De novo. Resolvi que não queria mais esse macho vagabundo e desaforado. Eu só não queria estragar o reisado. Naquela hora, lembrei que ainda não tinha feito o meu pedido anual. Então com muita fé, pedi pra ele sumir. Morrer não, sumir da minha vida para sempre.


Pois então, chegou a hora da apresentação do reisado. A festa estava colorida. Na banda, havia três músicos, tinha um que tocava o pandeiro, um com uma zabumba e outro com uma sanfona. O boi vestia uma capa xadrez vermelha e branca. A costureira também colocou flores e fitas coloridas no chifre do boi. Ele dançava e fazia círculos tentando escapar dos três caretas, que com três cacetes batiam no boi para que ele rodopiasse. Milton estava empolgado, esse era o terceiro ano em que ele dançava como boi. Já estava escuro e o grupo continuava animado. Os três caretas usavam longas vestimentas de palha, um chapéu, também de palha seca e na frente, cobrindo seus rostos, uma máscara bem trabalhada de palha seca e pintada com carvão. No embalo dos seus corpos, eu só via um vulto preto numa escuridão ainda maior. Milton estava lá, dentro da fantasia do boi, pulando e dançando. Na tradição, cada um dos caretas chama o boi para uma disputa particular. O boi rodopia e sempre o careta ganha o combate. A encenação termina quando o boi cai no chão. Milton não caía, parecia que queria dançar ainda mais. Depois de uma hora, o grupo demonstrava cansaço. Menos Milton, ele estava lá, animado, no vai e vem do ritmo da sanfona, ele seguia pra frente e para trás. Um quarto careta apareceu. Eu sei, são só três.


Não, eu não sei de onde surgiu esse quarto. E como eu vou saber, se não posso ver seu rosto? A careta que ele usava era mais caprichada, parecia até osso de verdade, não tão pequeno como a caveira de um bode. Era uma careta diferente, tinha um pelo escuro e brilhoso. O quarto careta não dançava, ele se arrastava na terra do quintal. Eu não vi seus pés. O que eu via? Só o corpo do careta se movendo lentamente com sua longa vestimenta de palha que deslizava pelo chão. Ele não batia no casco do boi, ele passava a mão, como se quisesse ganhar a confiança do animal. Ele chegou mais perto e passou a mão no chifre do boi, que rendeu-se ao careta. O boi parou de dançar e baixou a cabeça. Com seu corpo caindo ao chão, levou um tapa leve do careta e não mais levantou. Tiraram a capa do boi e Milton não estava lá. Ficamos assustados e nos aglomeramos ao redor da fantasia. Procuramos o quarto careta, porém ele não estava mais lá. Foi isso que aconteceu, seu delegado. Será que quando a gente deseja muito uma coisa, ela acontece?




Image: Boi do Reisado, by Vera Bulla (2021)

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